As hierarquias dos projetos ou dos ideais anacrônicos
Diante de mais
uma crise econômica que o País atravessa – e falar em crise no capitalismo é
uma redundância – vemos o presidente da Câmara dos Deputados e seus seguidores
e escudeiros defenderem projetos que fariam sucesso até a primeira metade do
século XX e, assim mesmo, com ressalvas históricas. A marcha à ré nos direitos
da mulher face ao estupro, na noção de família, no acesso ao STF de certas
categorias religiosas, entre outros ,é de um anacronismo com poucos precedentes.
Isto poderia
passar desapercebido se fosse apenas mais um legislador prestando contas a seus
eleitores com projetos que atendem demandas específicas na contra mão da
universalização de direitos sem a menor condição de viabilizar-se e ser
aprovado. Mas, não é. É parte de um projeto antigo e dos mais tradicionais que
se arvoram falar em nome de Deus para realizar os poderes do macho em
detrimento dos femininos.
Participamos,
no Brasil, de um processo de transformação nada silencioso na hierarquia dos
projetos a serem atendidos. Apesar do alarido dos progressistas, as bancadas
religiosas e da bala, entre outras possíveis designações de mesmo espectro
político entre o reacionário e o saudosista lastreado numa pretensa
representação da verdade sobrenatural, tem avançado em meio as massas eleitoras
via igrejas e associações outras por elas fundadas como esteio de um povo que já
retorna para a indigência em meio a crise do País. Os ganhos sociais de 10 anos
de governos se evaporam em uma crise de dois anos.
Num arremedo
da Syllabus errorum, de Pio IX, só que desta vez via Estado, pretende-se negar
não mais apenas o mundo moderno, mas o pós-moderno com todos os avanços
científicos que equipararam homens e mulheres e agora avança para o campo da
homossexualidade – entre outras possibilidades.
Já Pio IX, em
1864, era um episódio anacrônico visto que se contrapunha as transformações do
mundo moderno. O que participamos hoje, face a evangélicos e Bolsonaros, para
não falar por hora do Estado Islâmico, demonstram o quanto a história não é
evolutiva ou feita apenas de avanços e progressos. Se nas eleições municipais que
se aproximam, mais uma vez o papel das igrejas for fundamental para garantir o
sufrágio de pessoas que não contam com o apoio real da maioria, o pacto entre
Estado e igrejas consolidar-se-á em detrimento da ciência pós-moderna. Pacto
avantajado pelo PT que agora perde o “controle da história”.
Neste quadro o
episódio do fechamento de escolas no Estado de São, via reorganização
geográfica e etária; a possível reforma na carreira de professores das
Universidades Estaduais, seguindo o norte dos Recursos Humanos neoliberais –
onde não há espaço para todos serem pesquisadores e quebrando o modelo de
carreiras estáveis para todos – demonstram o quanto o Estado democrático não
consegue dar respostas universalizantes nas terras do Brasil, mesmo sendo o
partido que se propõe dos intelectuais, o tucanato.
Assim, a
exclusão escolar, a perca do pouco espaço ganho pelas “novas classes médias”, que
de medianas quase nada tinham ou dispunham, o desmonte das carreiras
universitárias encontra seu casamento perfeito com igrejas que podem solucionar
via ritual mágico as agruras da pobreza e da ignorância que o Estado não faz dissolver
via política ou políticas.
E, para não
pensarmos que estamos sós neste episódio histórico que tende a tergiversar com
o retrocesso, guardadas as devidas proporções, ao menos por hora, o Estado
Islâmico enviou mensagem explícita de terror aos franceses de que a falta de
escolas orientadas pelo lema que fundamenta o mundo ocidental contemporâneo –
Liberdade, Igualdade e Fraternidade – viabilizam mãos armadas incapazes de
diálogo ou tolerância com a diversidade e a pluralidade laica pós-moderna, e
nem mesmo moderna, onde o espaço da mulher e do feminino é a invisibilidade.
Ao caminhar
dos debates e alianças políticas no Brasil, o que ainda chamamos de episódio –
e que foi inaugurando pelo pastor chutando a Santa de Aparecida em cadeia
nacional e condenado, ao menos naquela época, hoje em face ao “Somos todos Charlie
Hebdo” e os avanços da interpretação laica, poderia ter resultados diferentes –
a uma rotina onde terreiros de candomblé e igrejas católicas depredadas, ou
pessoas “apedrejadas” serão uma realidade sancionada pelas novas maiorias, num
contra fluxo da interpretação laica?
O aviltamento
de uma educação de qualidade para a nação em conformidade aos cânones da
ciência, entre elas com destaque para história, filosofia e sociologia, faz com
que nem todos entendam que o ataque à França foi um ataque a todo o estilo de
vida ocidental onde ser livre é elemento
constitutivo de cidadãos e não de fiéis seguidores doutrinados. O ataque a
França é contra a liberdade da mulher e do feminino. É contrário a ciência e sua liberdade de
pesquisa. Em síntese, é o estopim que fez milhares migrar de seus países em
busca do sonho europeu lastreado pelos Direitos Humanos, herdeiro e
representante direto do lema da Revolução Francesa.
Que pese, e
muito a tragédia do mar de lama em Minas Gerais que arrastou muitos à falência,
outros à morte, e tantos outros à escassez de água – e com ele a comparação do mar de lama que
envolve os nossos políticos e políticas. É urgente e necessária uma resposta do
Estado para além das providências da justiça. E, neste ponto não é isto ou
aquilo. O local ou o global. É um e outro num contexto de complexidade pós-moderna.
Sem a França e
o peso histórico de seus pensadores históricos, num futuro próximo tudo isto
que ocorreu em Minas poderá ser explica pura e simplesmente como vontade de
Deus em punição aos pecados. Ou, pior ainda, que o “Efeito estufa” é uma condenação
Divina às condutas irreligiosas dos humanos e não resultado dos erros de
política e políticas econômicas insustentáveis ecologicamente, mas muito
rentáveis no plano dos capitais.
Assim, não
deixa de ser contraditório que tantos solicitem orações à França e não
atitudes, como as que os próprios franceses evocaram ao cantar o hino
revolucionário: às armas cidadãos. A França fundadora do mundo contemporâneo
sabe que orações não resolverão a questão, pelo contrário, pode e muito a
tornar ainda mais complexa e menos tolerante as questões envolvidas em nome do
poder do macho e de seu deus masculino que legitima o controle, da dominação e
a explora excludente da mulher, do feminino, da liberdade, da ciência...
Por outro
lado, a França da Liberdade, Igualdade e Fraternidade responde militarizando a
sociedade para proteger a liberdade castrada ao se limitar o direito de reunião
e ir e vir. Tristes tempos onde ainda se faz sentir os ecos do dilema ético da frase histórica “para que
haja paz, é necessária a guerra”?
Anacronismo,
bem-vindo ao século XXI e bem na data que comemoramos, 15 de novembro, da
Proclamação a República, aquela República que separou Igreja e Estado e fez
avanças direitos civis, políticos e econômicos para homens e mulheres,
masculino e feminino inspirado nos ideais franceses.